O que é uma ADPF?
Esse tipo de ação tem como objetivo evitar que um ato do Poder Público (união, estados, Distrito Federal e municípios) viole o que a gente chama de preceito fundamental e objetiva, também, em caso de ocorrência do dano, repará-lo.
Mas o que é Preceito Fundamental? Preceito significa regra, norma e fundamental significa que essa regra é essencial, importante e crucial para a nossa vida em sociedade.
Embora essa expressão “preceito fundamental” ainda não tenha uma definição exata, algumas partes de maior relevância do texto constitucional, com certeza, fazem parte desse conteúdo, ainda em aberto, como é o caso dos princípios fundamentais (artigos 1º a 4º) e direitos fundamentais (artigo 5º e seguintes), bem como as que abrigam cláusulas pétreas (artigo 60, § 4º).
No caso da ADPF 709 um dos principais preceitos fundamentais em debate é o direito fundamental à saúde, que está na Constituição Federal de 1988, no seu Art. 6º.
Veja O QUE FOI PEDIDO e O QUE FOI CONCEDIDO.
a história constitucional brasileira
decisão histórica?
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV – a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V – o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Os seis partidos políticos que subscreveram, por adesão, a ADPF 709 em conjunto com a APIB estão legitimados pelo inciso VIII, do artigo 103 da Constituição, por disporem todos de representação parlamentar no Congresso Nacional.
O ministro apontou a necessidade de respeitar as formas próprias de organizações tradicionais indígenas e garantir-lhes a possibilidade de mobilizar o sistema de justiça em defesa de seus direitos, conforme os artigos 231 e 232 da Constituição.
foi necessária?
Desde o anúncio da pandemia pela Organização Mundial da Saúde, a APIB vinha anunciando em suas redes sociais o receio de que os danos e riscos para os povos indígenas fossem ainda maiores do que para o restante da população. No dia 22 de abril de 2020, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Saúde, também sobreavisava o Governo brasileiro: “o crescimento exponencial de casos confirmados de COVID-19 na população brasileira e a clara interiorização da circulação viral, com destaque para os estados do Amazonas e Amapá, nos alertam para os impactos dessa pandemia nos povos indígenas”.
Apesar dos avisos, lamentavelmente, esse cenário se concretizou. O diagnóstico feito pela APIB a levou a tomar importantes providências, como fazer seu próprio levantamento independente de dados e a propor a ADPF 709 motivada pela iminência de uma tragédia. No momento em que se decidiu construir a Arguição, o Brasil registrava o já assustador número de 55 mil mortos por Covid-19 e pouco mais de um milhão de contaminados, números que aumentavam aceleradamente a cada dia.
O modo como a APIB traçou a sua estratégia judicial e a forma como ela foi analisada pelo ministro relator, permite-nos dividir os pedidos em 3 blocos:
Bloco 1 – Sobre povos indígenas isolados e de recente contato a APIB pediu para o STF:
(a) Determinar à União Federal que tome todas as medidas necessárias para que sejam instaladas e mantidas barreiras sanitárias para proteção das terras indígenas em que estão localizados povos indígenas isolados e de recente contato. As terras são as seguintes: dos povos isolados, Alto Tarauacá, Araribóia, Caru, Himerimã, Igarapé Taboca, Kampa e Isolados do Rio Envira, Kulina do Rio Envira, Riozinho do Alto Envira, Kaxinauá do Rio Humaitá, Kawahiva do Rio Pardo, Mamoadate, Massaco, Piripkura, Pirititi, Rio Branco, Uru-Eu-WauWau, Tanaru, Vale do Javari, Waimiri-Atroari, e Yanomami; e dos povos de recente contato, Zo’é, Awa, Caru, Alto Turiaçu, Avá Canoeiro, Omerê, Vale do Javari, Kampa e Isolados do Alto Envira e Alto Tarauacá, Waimiri-Atroari, Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá, Yanomami, Alto Rio Negro, Pirahã, Enawenê-Nawê, Juma e Apyterewa. (grifo nosso)
(b) Determinar à União Federal que, durante a pandemia do COVID-19, providencie o efetivo e imediato funcionamento da “Sala de Situação para subsidiar a tomada de decisões dos gestores e a ação das equipes locais diante do estabelecimento de situações de contato, surtos ou epidemias envolvendo os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato” (art. 12 da Portaria Conjunta n. 4.094/2018, do Ministério da Saúde e da Funai), o qual deve necessariamente contemplar, em sua composição, representantes do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União e dos povos indígenas, estes indicados pela APIB.
Bloco 2 – Retirada de invasores de terras indígenas:
c) Determinar à União Federal que tome todas as medidas necessárias para a retirada dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru- EuWau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá, valendo-se para tanto de todos os meios necessários, inclusive, se for o caso, do auxílio das Forças Armadas.
Bloco 3 – Povos indígenas de um modo geral:
(d) Determinar que os serviços do Subsistema de Saúde Indígena do SUS devem ser prestados a todos os indígenas no Brasil, inclusive os não aldeados (urbanos) ou que habitem áreas que ainda não foram definitivamente demarcadas.
(e) Determinar ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) que, com auxílio técnico das equipes competentes da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e do Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), e participação de representantes dos povos indígenas, elabore, em 20 dias, plano de enfrentamento do COVID-19 para os povos indígenas brasileiros, com medidas concretas, que tornar-se-á vinculante, após a homologação pelo relator desta ADPF.
Os representantes dos povos indígenas na elaboração do plano devem ser indicados pela APIB (pelo menos sete) e pelos Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (pelo menos três).
(f) Determinar aos órgãos competentes o cumprimento integral do plano, após a sua homologação, delegando o monitoramento do plano ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, com auxílio técnico da equipe competente da Fundação Oswaldo Cruz, e participação de representantes dos povos indígenas, nos termos referidos no item anterior.
No dia 04 de agosto de 2020 o advogado Luiz Eloy Terena fez a sustentação oral em defesa dos argumentos da APIB na ADPF 709. Assista aqui.
O que foi concedido?
III.1. QUANTO AOS POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO OU POVOS INDÍGENAS DE RECENTE CONTATO:
1. Criação de barreiras sanitárias, que impeçam o ingresso de terceiros em seus territórios, conforme plano a ser apresentado pela União, ouvidos os membros da Sala de Situação (infra), no prazo de 10 dias, contados da ciência desta decisão.
2. Criação de Sala de Situação, para gestão de ações de combate à pandemia quanto aos Povos Indígenas em Isolamento e de Contato Recente, nos seguintes termos: (i) composição pelas autoridades que a União entender pertinentes, bem como por membro da Procuradoria-Geral da República, da Defensoria Pública da União e por representantes indígenas indicados pela APIB; (ii) indicação de membros pelas respectivas entidades, no prazo de 72 horas a contar da ciência desta decisão, apontando-se seus respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones de contato, por meio de petição ao presente juízo; (iii) convocação da primeira reunião da Sala de Situação, pela União, no prazo de 72 horas, a contar da indicação de todos os representantes, por correio eletrônico com aviso de recebimento encaminhado a todos eles, bem como por petição ao presente juízo; (iv) designação e realização da primeira reunião, no prazo de até 72 horas da convocação, anexada a respectiva ata ao processo, para ciência do juízo.
III.2. QUANTO A POVOS INDÍGENAS EM GERAL
1. Inclusão, no Plano de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para os Povos Indígenas (infra), de medida emergencial de contenção e isolamento dos invasores em relação às comunidades indígenas ou providência alternativa, apta a evitar o contato.
2. Imediata extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos aldeados situados em terras não homologadas.
3. Extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos indígenas não aldeados, exclusivamente, por ora, quando verificada barreira de acesso ao SUS geral.
4. Elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da COVID-19 para os Povos Indígenas Brasileiros pela União, no prazo de 30 dias contados da ciência desta decisão, com a participação do Conselho Nacional de Direitos Humanos e dos representantes das comunidades indígenas, nas seguintes condições: (i) indicação dos representantes das comunidades indígenas, tal como postulado pelos requerentes, no prazo de 72 horas, contados da ciência dessa decisão, com respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones de contatos, por meio de petição ao presente juízo; (ii) apoio técnico da Fundação Oswaldo Cruz e do Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, cujos representantes deverão ser indicados pelos requerentes, no prazo de 72 horas a contar da ciência desta decisão, com respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones de contato; (iii) indicação pela União das demais autoridades e órgãos que julgar conveniente envolver na tarefa, com indicação dos mesmos elementos.
Observe-se que o único pedido não deferido pelo relator foi a retirada dos invasores das terras indígenas. Ou seja, o pedido que pedia para determinar à União Federal que tome todas as medidas necessárias para a retirada dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru- EuWau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá, valendo-se para tanto de todos os meios necessários, inclusive, se for o caso, do auxílio das Forças Armadas.
Para o relator, a situação das invasões “não é nova nem guarda relação com a pandemia. Trata-se de problema social gravíssimo, presente em diversas terras indígenas e unidades de conservação, de difícil resolução.” Além disso, o Ministro Barroso afirmou entender que o ingresso de forças militares e policiais em terra indígena para a retirada dos invasores aumentaria o risco de contágio nas terras indígenas e recomendou, “por ora, medida emergencial de contenção e isolamento dos invasores em relação às comunidades indígenas ou providência alternativa apta a evitar o contato.
No dia 5 de agosto de 2020 o Plenário do STF referendou a decisão do Ministro Relator. O Ministro Edson Fachin foi o único a ponderar a importância de que também fosse concedido o pedido da retirada de invasores das terras indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu Wau-Wau, Kaiapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá. Disse ele:
“… estou propondo um deferimento em maior extensão (…) de determinar que a União inclua, no plano de enfrentamento e monitoramento da COVID-19 para os povos indígenas, medidas emergenciais para desintrusão das áreas apontadas, medidas essas a serem cumpridas inadiavelmente em até 60 dias após a homologação do plano pelo Relator da ação, mediante a utilização de todas as cautelas necessárias para proteger a saúde dos índios, dos agentes estatais e de todos os envolvidos nas operações, com a adoção das recomendações sanitárias adequadas ao desempenho da tarefa de retirada dos invasores das áreas de ocupação indígena. (…) propondo um deferimento em maior extensão, no sentido de acolher o pedido cautelar também nesse ponto, quanto à retirada dos invasores, porque fica evidenciada, à luz da petição inicial, de um lado, a situação calamitosa nessas sete terras indígenas que sofrem mais acentuadamente, no ano corrente, invasões de terras e desmatamento, fatos que agravam o risco de contágio das comunidades citadas e elevam sobremaneira a mortandade dos índios; e de outro, porque entendo que não é possível, do ponto de vista da efetividade constitucional, submeter um comando constitucional protetivo, sem ressalvas, às terras indígenas a qualquer delonga ou demora.”
E, comentando o posicionamento contrário do Ministro Barroso sobre as invasões afirmou:
É certo que o problema não é novo, como bem pontuou o ilustre Relator. De fato, a mora do Brasil com os povos indígenas é mais do que secular. No entanto, a situação emergencial da pandemia da covid-19, com o agravamento do contágio pela proximidade dos invasores aos indígenas, torna ainda mais urgente a busca por um equacionamento célere do tema. Entendo que o pedido dos autores se mostra bastante razoável ao indicar sete áreas específicas para atuação emergencial dos poderes públicos, e não a integralidade dos territórios indígenas invadidos em todo o País. A situação calamitosa em que essas populações vivem foi objeto de decisão por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanas, que emitiu recentemente a Recomendação 35/2000 ao Estado Brasileiro, a fim de, cautelarmente, instruir o Governo a atuar na proteção dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana. De modo que, com base nessas considerações, entendo que há urgência, sim, na retirada dos invasores das terras indígenas, como apontado na inicial, seja pelo transcurso do período da seca amazônica, de maio a setembro, quando os invasores atuam para prática de atividades ilegais, aproveitando-se da ausência das cheias, seja pelo risco de inocuidade das demais medidas cautelares ora sob referendo, as quais podem não restar efetivas se a manutenção dos milhares de invasores nas áreas não for controlada de modo célere a evitar que espalhem a doença àqueles em situação de extrema vulnerabilidade epidemiológica.
Apesar disso, os demais ministros seguiram o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso.